quarta-feira, setembro 08, 2004

 

 

A face da Eternidade


Ouvi soar a campainha, saltei da cadeira e sonhei em apanhar o sol com as mãos!
Corri o mais que podia em direcção aos portões da escola, da escolha que fiz há dois anos. Segui em frente sem olhar para trás. Cheguei à conclusão que havia perdido o tempo a sonhar no imprevisível campo das possibilidades. Pude então virar a minha atenção para a imagem sempre viva de um rosto belo, talvez o mais belo que alguma vez vira. A impossibilidade era agora uma palavra varrida do meu dicionário pessoal, intransmissível como qualquer hipotético bilhete de identidade.Em nome de um sonho, os meus pés eram acelerados processos de produção de vitalidade, o meu coração interrompia uma longa letargia existencial, o mundo afinal sempre rodava... alguém o disse um dia, mas as interpretações foram sempre tristemente pobres. A minha vida adquiriu uma cor nunca antes vista, uma cor que não existia no mundo em que anteriormente vivia, uma cor sem simplificação descritiva.
Escassos metros me separavam do imenso caos, a aventura de correr naquela calçada irregular, fria e húmida por esporádicas gotas de chuva que se precipitavam, como uma benção, um sinal de libertação, a vida nas mãos do seu detentor. Expulsei o medo e corri... na direcção da matéria, fugindo do vazio, da escuridão, das trevas que inundavam o cenário atrás de mim.Cheguei por fim, vi-a olhar-me de soslaio, a inquietação de alguém que desconhece a verdade, o receio do desconhecido. O seu olhar indiferente repousou sobre o meu ofegante deambular, uma correria desgarrada finalizada num olhar indiferente. Parei então, o seu olhar foi efémero mas penetrou a minha alma, os seus cabelos voltaram a sorrir-me e os seus pés soltaram a energia como anteriormente. Vi-a afastar-se novamente, no entanto agora estava parado, o coração parecia ter parado de bater, estava no meio do caos, a luz paralisara-me a fuga, a escuridão voltara. A luz afastava-se.
O momento era solene, não ouvia, não via, não sentia, um túnel parecia formar-se no meu campo de visão, senti o frio cortante, senti... ouvi e vi, mas a dormência apoderara-se de mim, havia sido apenas um intervalo na minha incapacidade de viver aqueles momentos.
Naquele túnel, apenas um pontinho ínfimo de luz era visível. A minha vida passava em frente aos meus olhos em forma de pedaços separados, qual puzzle de mil peças, a minha alma parecia cada vez mais distante do meu corpo. A luz era cada vez mais ténue, uma estrela em colapso, a viagem sem regresso. A tranquilidade encarnava em mim como nunca antes a havia sentido, a felicidade parecia irreal, nunca o negro me parecera tão sublime!
A estrela, era já uma sombra do que fora, o presente estava cada vez mais perto de completar o puzzle da minha vida, a ultima imagem invocava a beleza, a mais bela face que alguma vez vira... aquela face linda, aquela luz que transbordava de um olhar indiferente, a ultima memória.
Mas... de repente, a memória invoca a velocidade vertiginosa em direcção à luz que parecia quase imperceptível, os meus olhos transbordam de luz, a face salvadora apresenta-se na forma de uma imagem iluminada, regresso à realidade, vejo uma amalgama de luz, brancura, aparelhos e ruídos vários. No centro, lá estava aquela face, a beleza universal de uma salvação improvável. A sua expressão mudou radicalmente, antes parecia triste ao me ver de volta, soltou um sorriso que nunca lhe tinha visto, senti a sua bonita voz entrar-me pelos ouvidos como música encantada. O caos, sobressaiu e novas caras os meus olhos descobriram, corpos vestidos de branco, as suas faces eram benévolas, eu centrava as atenções, sorrisos eram a faceta de uma realidade. Mas o meu campo de visão só fixava aquela rapariga de feições extasiantes.
Minutos passaram, estava de volta, a minha alma estava agora mais do que nunca, ligada ao meu corpo. Finalmente só, eu e aquela que perseguia, aquela que me traria a felicidade, tinha agora a certeza. Ela olhou-me com um sorriso, um sorriso divino, uma parte de um todo, a sensibilidade de um ser evocado na volúpia dos lábios. A sua mão percorreu a minha face, senti a paz, sorri então, ela aproximou a sua cara da minha, o sonho terminara, a realidade tomara o seu lugar. Os seus lábios tocaram minha face, uma lágrima escorreu pela sua cara e caiu na minha. A minha mão, refém de um sem numero de objectos estranhos ao meu corpo, foi de encontro à sua face, o polegar limpou aquela intrusa liquida e salgada que interrompia um sorriso lindo.Repentinamente, um som agudo, maquinal interrompe este momento, um estranho frio volta a apoderar-se do meu corpo, a luz parece ser cada vez mais intensa, parece explodir. O meu olhar continua fixo nos olhos dela, mas algo estava a quebrar o sentido da realidade actual, a expressão dos seus olhos modifica-se repentinamente, e vejo a tristeza, vejo aquela mão que antes me tocara a pele retirar-se e refugiar-se em concha de frente ao bonito mas transformado sorriso, sei que este se havia retirado. Os seus olhos começam a expulsar lágrimas em convulsão, enquanto a luz é cada vez mais intensa. O caos volta, as batas brancas envolvem-me novamente, as expressões são agora de inquietação e urgência. A mão dela continuava de frente à sua boca, os seus olhos continuavam nos meus mas cada vez mais húmidos de lágrimas. Eu começava a ter dificuldades em vê-la, a luz cegava-me, a paz parecia adquirir novamente a minha alma. Deixei de ver os seus olhos, a sua face, as suas mãos... o som estridente desaparecera, a calma voltara.

Estava agora numa praia onde apenas sentia o vento, as dunas por trás de mim, as ondas perfeitas a quebrarem à minha frente. A liberdade absoluta, a calma extrema, e não apenas aparente, a felicidade... lembranças de uma vida, lembranças dos que amara, lembranças de um monstro de chapa que me trouxera de encontro ao sitio onde estava, naquele dia em que aquele olhar pela primeira vez me havia tocado a alma, nesse mesmo dia em que esse olhar se tinha envolvido naquela luz que me cegara para sempre e me fizera partir de encontro aquela praia eterna. A vida, a morte, o amor, tudo parte de uma existência... uma existência que não terminara, nem nunca terminaria.
Comments:
Que "boa onda". Parabens!
 
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